Vou mudar a tônica neste post, afastando-me apenas superficialmente do tango, já que na essência, a meu ver, quase qualquer atividade humana pode ser descrita pelos versos de Cambalache.
Um amigo muito próximo, porém distante geograficamente, me enviou um vídeo que me fez refletir, sentir, lembrar, questionar tempos que eu achava esquecidos. Tempos em que decidi, depois de muitas dúvidas, questionamentos e medos, ser um cientista.
Corria o ano 82, vivíamos uma ditadura agonizante, depois da derrota nas Malvinas. No meio desse caos, como um oásis, na televisão aberta e em horário nobre (nessa época não existia TV a cabo nem a mídia era “Global”) passavam o seriado Cosmos de Carl Sagan.
Sem dúvida, aquela acolhedora peça de divulgação científica teve um efeito marcante na minha decisão: abraçar à ciência como uma forma de vida. Naquela época, minha visão da ciência, mais idílica, ingênua, quem sabe mais inocente, era muito mais próxima da arte do que qualquer outra disciplina.
O desafio intelectual de compreender a natureza e, como consequência direta, o rechaço ao dogmatismo e a qualquer tipo de autoritarismo, davam um caráter heroico a essa atividade. Depois de muitos anos, e da construção de uma “carreira”, me pergunto o que ficou daqueles valores que me levaram a percorrer este caminho?
Uma pergunta recorrente é: para que serve a ciência? (típica filosofia de boteco, pelo menos dos que eu frequento). Os novos tempos, impulsionados por uma quinta força que chamam “mercado”, tentam me convencer que serve para produzir (?!) os últimos modelos de celulares, aparelhos de televisão, as lentes que uso para escrever este post, carros, computadores, vacinas, medicamentos, herbicidas, sementes, e tantas outras coisas que, dizem, nos diferenciam dos animais. Temerariamente, as vezes, submergido na correria do dia a dia, ou por cansaço, a gente acaba acreditando! Ainda bem que existem alarmes, avisos, sinais (como este vídeo aqui!) que de vez em quando falam mais alto e fazem a gente “parar a bola e levantar a cabeça” .
O liberalismo moderno (obviamente muito distante das suas origens antimonárquicas do século XVIII, ou neoliberalismo, ou como vocês prefiram chamar aos adoradores do deus mercado), dogmático e autoritário, mesmo que fantasiado de conceitos pseudocientíficos, tenta fazer da ciência uma mercancia, tirando definitivamente seu valor cultural, humano, universal e certamente revolucionário.
O centro da questão é o verbo “servir”. Eu pergunto para que “serve” o Guernica de Picasso? E o David de Michelangelo? Para que “serve” a Eroica de Beethoven? E os versos mas tristes de Neruda? Para que “servem” os cem anos de solidão de Garcia Marquez ou todos os nomes de Saramago?
Na minha opinião, a ciência “serve” para exatamente a mesma coisa.
"O centro da questão é o verbo “servir”", fico feliz (e triste kk) em ver que um pesquisador com a carreira solida como a sua, ainda guarda lugar para tal questão. pois bem, a serventia eu acho que vai ser uma construção individual de cada "ser". Eu tinha um sonho, ao fazer ciência, de deixar uma marca no mundo. Este sonho já se foi... agora é uma questão de satisfação apenas!
ResponderExcluirkkk Abraço amigo!
Parabéns Daniel.
ResponderExcluirNós nos formamos na mesma faculdade, en La Plata.
Gostei muito da matéria. Atualmente estou trabalhando com pesquisador na Fiocruz. A tua matéria vai me servir para um seminário que darei semana que vem sobre Biologia Estrutural.
Grande abraço.
Ernesto Caffarena